Mais que futebol

Mais que futebol

6 de fevereiro de 2024 8 Por amadorblog.com.br

Não faço a menor ideia de quando comecei a amar o futebol. Minhas lembranças mais antigas remontam ao fascínio e à frustração da Copa do Mundo da França, em 1998. Eu importunava meus pais para adquirir todos os colecionáveis “mini craques” da Coca Cola e para completar os álbuns de figurinhas da Panini. Me lembro também de aproveitar todas as oportunidades que eu tinha para pedir bolas e uniformes do Galo de presente. Enquanto eu não precisei pagar pelos meus ingressos e enquanto o estádio era acessível a uma família de classe média que não contava com muitas sobras, a presença no Mineirão com meu pai, minha irmã, tios e primos era recorrente.

Mais tarde, o PlayStation alargou as fronteiras da bola para mim, e comecei a me encantar com os grandes clubes e craques europeus. Sabia todas as escalações, bem como os detalhes de cada jogador dos meus times preferidos. Trago isso na memória até hoje, e sou acusado de “maluco” pela minha esposa por saber as escalações completas de vários times, nome e sobrenome de uma quantidade absurda de jogadores, bem como suas posições e características.

Joguei bola a vida toda. Quando bem novo, na pequena escola de bairro, até me destacava e mantinha alguma ilusão de me tornar um jogador. Depois, quando o mundo ficou maior e a concorrência mais numerosa, percebi que minha paixão não era suficiente para superar a minha mediocridade. Hoje, sei chutar a bola o suficiente para me divertir e para ser aceito entre os amigos que são bem melhores que eu. Pura graça!

Mas há uma memória futebolística que desperta em mim algo que está muito além do futebol. Em 2002 a Copa do Mundo mudou provisoriamente os hábitos da nossa casa. Eu tinha 10 anos e morava com os meus pais na casa dos meus avós. Uma grande casa de dois andares, com cômodos exageradamente amplos, pé direito altíssimo e pisos de taco. O fuso horário do outro lado do mundo nos obrigava a acordar de madrugada para assistir aos jogos. Mamãe preparava os bolinhos de chuva e nós subíamos para o andar de cima, na casa dos meus avós, para assistirmos juntos à seleção que encantou o mundo. Turquia, China, Costa Rica, Bélgica, Inglaterra e Turquia novamente. Até hoje me arrependo de não ter assistido à final contra a Alemanha ali. Estávamos sempre todos lá: eu, meus pais, minha irmã, vovó Délia e Vovô Iracy.

As minha melhores lembranças dessa Copa envolvem os bolinhos de chuva, o Fenômeno, o Rivaldo, o Gilberto Silva, jogador do Galo, e o Vovô Iracy. Talvez por morarmos juntos ou pela afinidade alvinegra, eu sempre me senti o neto favorito do vovô. Não conheci o Senhor Iracy de quem todos falam: homem alto, muito elegante, de voz firme e presença marcante, tanto pelo físico quanto pelo temperamento. Eu me lembro do meu avô: homem já abatido pela idade e doença, mãos trêmulas por causa do Parkinson, que passava mais tempo sentado do que em pé. Vovô morreu em 2003, por complicações de um câncer no pulmão (eu acho). Um ano antes, durante a Copa do Mundo, já bem debilitado, ele nos acompanhava em todos os jogos, sempre sentado na sua cadeira de balanço.

A turma toda se dispersava logo depois da vitória do Brasil. Mamãe e Vovó iam arrumar as coisas e preparar o almoço, meu pai ia trabalhar e minha irmã ia para a escola. Sobrávamos eu e o vovô, que ficávamos ali naquela sala enorme para assistir ao próximo jogo e… jogar bola! Sim, jogar bola! A sala ampla, com sofás encostados nas paredes laterais e a TV de 29 polegadas na esquina contrária à cadeira do meu avô eram um palco perfeito para emocionantes partidas de futebol entre um neto e seu velho. Eu posicionava a bola mais leve que eu tinha ao alcance dos pés trêmulos dele, atravessava a sala, estendia meus braços e dava o sinal. Vovô chutava bem fraquinho e sem se levantar, sentado mesmo, e eu fazia uma defesa espalhafatosa. “São Maaaaaaarcos!!!”. Em seguida ele me dava uma assistência e eu, como um camisa 9 nato, arrematava ao gol e saía comemorando com o dedo indicador em riste. Era o gol da vitória. E assim brincávamos: uma criança de 10 anos com energia e imaginação o suficiente para fazer um velho, já no final da sua vida, reunir todas as suas forças para chutar uma bola. Vovô já estava cansado demais para se levantar, mas não para brincar comigo.

Não sei qual era a fé dele, mas lembrar dessas coisas me fez lembrar das palavras do Mestre:

“Ele, porém, chamou as crianças para junto de si e disse aos discípulos: “Deixem que as crianças venham a mim. Não as impeçam, pois o Reino de Deus pertence aos que são como elas. Eu lhes digo a verdade: quem não receber o Reino de Deus como uma criança de modo algum entrará nele”; “Quem recebe a uma destas crianças em meu nome, está me recebendo”.

Essas memórias têm cheiro e textura para mim. Me recebem com uma hospitalidade messiânica. Fazem a criança que há em mim sentir hoje, aqui e agora, um gostinho do céu. “Assim diz o Senhor dos Exércitos: homens e mulheres de idade avançada voltarão a sentar-se nas praças de Jerusalém, cada um com sua bengala, por causa da idade. As ruas da cidade ficarão cheias de meninos e meninas brincando” (Zacarias 8: 4,5).

Na imagem que tenho do céu, um velho chuta uma bola para que seu neto marque um gol na final de uma Copa do Mundo. Vovô me abençoou com aquelas emocionantes partidas de hospitalidade. Me recebeu, como Jesus me receberia anos mais tarde. Eu acho que o Vovô também foi recebido, afinal, eram duas crianças jogando bola naquela sala.