O país de onde caem as sombras

O país de onde caem as sombras

25 de abril de 2024 0 Por amadorblog.com.br

Em sua busca pela fechadura que a chave de ouro que encontraram abriria, Emaranhado e Musgoso chegaram a um incrível deserto de arenito sólido, cuja superfície estava apinhada por todo tipo de sombras. Podiam avistar uma floresta, com grande variedade de árvores, flores e caules, “flutuando e estremecendo no sopro de uma brisa cujo movimento não era sentido, cujo som era inaudível”. Logo começaram a perceber que haviam criaturas na floresta: conhecidas e desconhecidas, algumas comuns e outras fantásticas. Todas sublimes, mas apenas sombras.

“Emaranhado e Musgoso muitas vezes erguiam a cabeça e olhavam para cima para ver de onde vinham as sombras; mas não puderam ver nada mais que uma névoa brilhante espalhando-se acima deles”.

A aparência dos amigos mudou. Décadas se passaram naqueles poucos minutos, e à medida que envelheciam, iam percebendo novas e maravilhosas sombras: crianças brincalhonas correndo pra lá e pra cá, velhos amantes passeando de mãos dadas, um pai conversando divertidamente com seu filho, entre outras coisas, que nunca souberam descrever, mas que eram igualmente belas.

Quando os amigos se sentaram para descansar um pouco e se entreolharam, puderam perceber lágrimas nos olhos um do outro: “ambos ansiavam pelo lugar de onde caíam as sombras”.

Em uma breve cena de “A Chave Dourada”1, George MacDonald (se você não o conhece, conheça!) transforma em fantasia a ordinária busca de todo homem e mulher. O sábio autor do Eclesiastes, após observar atentamente e meditar profundamente na vida humana, afirma que “Deus fez tudo apropriado a seu tempo; também pôs no coração do homem o anseio pela eternidade” (Eclesiastes 3:11). Os dois autores concordam sobre a grande aventura humana: a busca por uma realidade que traga propósito. Uma realidade que não pode ser afetada pelas mazelas do pecado e pelas limitações do tempo e do corpo. A busca pelo “país” que lança suas maravilhosas sombras sobre o deserto da nossa peregrinação, dando àqueles que aprendem a olhar circunspectamente um aperitivo do que um dia lhes será dado, lhes despertando e orientando o desejo.

No fim, a história de Emaranhado e Musgoso é sobre isso: desejo despertado e orientado. As sombras são belas e atraentes, mas não satisfazem. Enchem os olhos e fazem palpitar o coração, mas são apenas sombras. Não têm o poder de preencher o vazio da necessidade humana, mas podem apontar para Aquilo que pode satisfazer o nosso anseio pela eternidade, por assim dizer – afinal, hoje vemos em parte, e o que em parte vemos desperta e orienta nossa vida para o dia em que veremos plenamente.

“Na busca de um navio, não é o navio que eu procuro, mas a pátria aonde ele vai me conduzir”2. Santo Agostinho sabia que toda beleza, todo prazer e todo deleite vivido no deserto da vida humana não eram a coisa em si. Podemos tomar o navio – ou nos distrair com as sombras – como um fim em si mesmo, e assim nos afundarmos em deliciosa idolatria mortal; ou podemos desfrutar das coisas criadas, permitindo que elas nos conduzam em liberdade para o lugar onde a Graça e a Verdade se beijam, onde o deleite tem propósito, e onde o Amor Eterno pode saciar a eterna fome da alma.

“Precisamos encontrar o lugar de onde vêm as sombras!”. Os amigos não se deixaram laçar pelas belas sombras. Permitiram que o prazer que elas lhes trouxeram os colocasse em marcha. “Avante, pois!”.

“Emaranhado subiu. Musgoso a seguiu. A porta se fechou atrás deles. Eles escalaram para fora da terra; e, ainda subindo, ergueram-se acima dela. Eles estavam no arco íris. Até muito longe, sobre o oceano e a terra, eles podiam ver através das paredes transparentes a terra sob seus pés. Escadas ao lado das escadas se juntavam e belos seres de todas as idades subiam com elas. Eles sabiam que estavam subindo para o país de onde caem as sombras. E a essa altura acho que eles devem ter chegado lá”.

  1. MACDONALD, George. A Chave Dourada. 1 ed. Brasil: Pé de Letra; 2021. ↩︎
  2. AGOSTINHO. O Sermão da Montanha e Escritos sobre a Fé (livro eletrônico). São Paulo: Paulus, 2017. – Coleção Patrística. ↩︎